terça-feira, novembro 14, 2006

SÓ A INTENÇÃO É QUE CONTA?


É costume dizer-se que a intenção é que conta. Esta afirmação generalizou-se a tal ponto que serve mesmo para justificar as actuações mais condenáveis e todos querem passar por bem intencionados. Não podemos porém esquecer que não estamos sozinhos e que devemos pensar também nos outros e nas consequências das nossas acções.
Normalmente estamos prisioneiros do egoísmo, reféns de uma visão autista das coisas e o mundo gira à volta do nosso umbigo, espelhando as nossas fantasias e desilusões. Normalmente estamos reduzidos ao plano liso de um espelho que só reproduz aquela imagem de nós a que nos habituamos a confundir connosco.
Desde Descartes é habitual glorificar a omnipresença do eu e, de uma forma ou de outra, ficar enredado nos labirintos do solipsismo. No entanto será que a afirmação da individualidade implica forçosamente o menosprezo pela convivencialidade e uma condenação forçada a transformarmo-nos em ilhas com ténues ligações entre si, ligações essas regidas pelas leis do interesse? A afirmação da individualidade terá como consequência necessária o ficarmos limitados a uma perspectiva mutilada de quem olhando as coisas se revê numa imagem reflectida?
Penso que a individualidade não se reduz à consciência e não pode alicerçar-se sobre a dicotomização corpo/espírito. Essa individualidade autista, perfeitamente horrorizada perante o perigoso desconhecido que albergamos em nós foi claramente denunciada por Freud e temos hoje que construir sobre as suas ruínas.
É imprescindível que cada homem construa o seu projecto de vida e se esforce por concretizar os seus sonhos mas esse projecto e esses sonhos não podem constituir motivos para nos encerrarmos ainda mais nos nossos muros.
Em substituição do homem solitário é preciso construir o homem solidário, capaz de assumir responsabilidade plena pelos seus actos e de contribuir de forma criativa para uma vivência comum que permita a realização de todos e de cada um. Creio mesmo que a individualidade de cada um se forja no contacto e no confronto com os outros sem que isso implique uma sociabilidade forçada, feita de abdicações e imitações, de obediência a códigos alicerçados na força do hábito.
Se é a intencionalidade que torna os nossos actos significativos e lhes fornece validade existencial é necessário entender que a intencionalidade deve ser enraizada num diálogo com a realidade e com os outros em que definitivamente não somos os únicos interlocutores essenciais. Sem intencionalidade os actos serão gratuitos mas sem consciência de nós e dos outros perdemo-nos num labirinto de Narciso, pirâmides inúteis a assinalar uma existência que se esgotou como uma chama que apenas iluminou o vazio.
Ser homem é ser responsável e solidário, é assumir a tarefa e a liberdade de se construir sem impedir a construção dos outros. Ser homem é ser consciente de si e dos outros, é ultrapassar as limitações do aqui e agora e ser projecto e vida, algo que supera a situação de mero existente e se justifica através do seu próprio caminhar. É através da relação com os outros que o homem se descobre e se pode construir. É na partilha e no diálogo aberto que não exclui o conflito e as diferenças que o homem cria a sua própria realidade e a realidade comum. É através da intencionalidade responsável e solidária que o homem pode ultrapassar as suas fronteiras e crescer num mundo que finalmente seja um mundo de homens e para os homens.

Sem comentários: