sexta-feira, novembro 24, 2006

Condicionantes ou determinantes da acção?
O homem condicionado não é necessariamente um homem limitado ou, pior do que isso, determinado. Reconhecer que não temos uma liberdade infinita de escolhas não significa negar toda e qualquer liberdade. Por muito limitadas que sejam as opções disponíveis, existe sempre a possibilidade de dizer sim ou não, quero ou não quero. O meu corpo, as minhas condições físicas e psicológicas, a minha cultura, são parte da minha circunstância mas cabe-me a mim afirmar-me e projectar-me com base nesses alicerces, nesse conjunto de potencialidades. Nenhuma das múltiplas condicionantes determina o meu destino porque, como dizia o filósofo Ortega y Gassett, «eu sou eu mais a minha circunstância».
Se as condicionantes da acção humana fossem na realidade determinantes, o homem não conseguiria superar-se e construir-se em liberdade e através da liberdade de escolher e de se decidir. Se o homem fosse um ser predestinado, ele limitar-se-ia a efectuar, sem qualquer originalidade, aquilo que está prescrito para ele e não passaria de um actor de papéis que lhe couberam em sorte.
As condicionantes da acção são o nosso contexto, a nossa situação e devem constituir-se como desafios para que concretizemos os nossos projectos. Se transformarmos essas condicionantes em pretexto de desistência, numa atitude de fatalismo ou de impotência, somos nós mesmos que estamos a escolher o caminho mais fácil e a desistir da liberdade e de nós próprios.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Liberdade, sim, mas que liberdade?
Pode o homem ser verdadeiramente livre? Há quem defenda o determinismo biológico e afirme que o homem é condicionado e limitado pela sua herança genética e há também quem defenda o determinismo social, insistindo na ideia de que o homem é um mero produto da sociedade. Será a liberdade uma ilusão? Temos que confessar que sim: a liberdade total, a liberdade de se fazer tudo o que se quiser, é uma ilusão e uma ilusão perigosa. A liberdade absoluta, sem limites e sem condições é talvez própria dos deuses mas nunca dos homens. Se reconhecemos que essa liberdade é uma ilusão não seremos também forçados a reconhecer que não existe qualquer liberdade porque o homem, tal como tudo quanto existe na natureza, é comandado por leis imutáveis? Aceitamos que na natureza não há acasos e que tudo acontece de acordo com uma cadeia de causas e consequências. Também será assim no domínio do humano? Será que há um domínio especificamente humano, claramente distinto dos outros domínios? Demasiadas perguntas de uma vez só.
Ao debruçarem-se sobre estas questões, muitos filósofos clássicos optaram por negar a liberdade afirmando a necessidade. A pretensa liberdade que julgamos usufruir não passa, para Espinosa, de fruto da ignorância pois, se conhecessemos as leis que regem tudo, saberiamos que as nossas decisões foram necessárias, constringentes e não livres. Outros, como Kant, insistiram na autonomia humana, no livre arbítrio, acentuando o facto de que cada escolha deve ser produto de uma vontade livre e racional.
Sem deixar de pertencer à natureza, o homem tem características específicas que o diferenciam dos outros animais. Não é só a racionalidade ou a consciência da finitude mas também a importância que a acção reveste na sua construção que são próprios do ser humano. O homem constrói-se ao longo do tempo e para essa construção contribuem as suas acções, as suas escolhas. Se se pensar que essas escolhas não são livres estaremos a afirmar que o homem já está predestinado, limitando-se a cumprir um plano prédefinido. É a liberdade que dá sentido à vida humana, é a liberdade que permite ao homem assumir-se como um ser que age e se responsabiliza por aquilo que faz. Sem liberdade não há responsabilidade porque não podemos ser responsáveis por aquilo que fizemos obrigados ou que não foi escolhido por nós.
É preciso que o homem seja livre mas a liberdade não é ilimitada; ela é uma liberdade condicionada, situada. O campo das escolhas não é infinito porque o homem é um ser em situação, condicionado por múltiplas circunstâncias e, entre elas, o seu corpo, a sua condição física e psicológica e as normas e leis da sociedade em que está inserido. Mas mesmo não sendo infinitas há sempre possibilidade de escolher por muito limitadas que sejam essas possibilidades e são essas escolhas, por vezes difíceis, que definem os homens. O homem é um ser capaz de se superar, ultrapassando as limitações e barreiras aparentemente mais intransponíveis e é aí que reside o seu espaço de liberdade. O homem é um ser que não nasce livre mas que precisa de conquistar a sua emancipação, afirmar-se como autónomo, senhor do seu destino, livre.

sábado, novembro 18, 2006

Quem quer saber o que é a filosofia
A filosofia não é mero exercício de estilo, um conjunto de inutilidades barrocas mascaradas de raciocínios complexos e labirínticos. A filosofia não é uma profecia sob o manto de explicações racionais, um decálogo de princípios e regras esotéricos. Engana-se pois quem espera dela grandes revelações ou a penetração em segredos profundos e inexpugnáveis. Engana-se quem procura receitas na filosofia, mezinhas para os seus problemas ou analgésicos para o sofrimento. A filosofia não serve para simplificar a vida, reduzi-la a um esquema ritual de procedimentos. A vida não se pode reduzir a fórmulas nem a códigos. O homem é mais do que uma equação ou um símbolo.
Quem quer saber o que é a filosofia tem que deixar de lado os preconceitos, as ideias prévias e fazer um verdadeiro esforço de reflexão crítica, um esforço de dúvida e de interrogação, um esforço de radicalidade e de liberdade. Quem quer filosofar tem que recusar a escravidão a pensamentos esteriotipados ou evitar substituir essa escravidão pelo deslumbramento das ideias exóticas que funcionam como sereias e nos fazem perder o rumo e a coerência.

terça-feira, novembro 14, 2006

DUAS OU TRÊS COISAS QUE SEI DA FILOSOFIA


A filosofia não é uma doutrina ensinável e muito menos comercializável. Nela não se devem esperar encontrar dogmas, certezas inabaláveis, verdades inquestionáveis mas tão somente interrogações críticas e radicais, propostas possíveis ainda que rigorosamente fundamentadas, caminhos traçados à medida dos passos de quem os projectou trilhar. Por isso, a relação que se deve estabelecer entre o professor de filosofia e o aluno é substancialmente diferente da relação clássica existente entre mestre e discípulo em que este último é agente passivo, receptáculo, mais ou menos fiel, de um saber que o mestre fornece de uma forma mais ou menos doutoral. A primeira exigência que o filósofo faz ao aprendiz de filósofo é que pense pela sua própria cabeça, não aceite nada sem utilizar a reflexão e a crítica e a ajuda que o aprendiz pode esperar do filósofo é que este lhe proporcione oportunidades e instrumentos para aprender por si mesmo, para construir o seu próprio saber. A filosofia neste sentido é mais um trajecto do que um conjunto, mais ou menos cristalizado, de ideias, raciocínios e afirmações. Por isso não é possível vendê-la nem comprá-la, consumi-la tranquilamente no remanso do nosso sofá estofado.
A filosofia não fornece receitas de felicidade nem resolve magicamente os nossos problemas mas, sem ela, a felicidade será sempre mansa, dócil e caprichosa e os problemas não são resolvidos através do fechar de olhos ou da aceitação passiva das soluções que os vendedores de promessas nos dão a troco de uma fé sem perguntas.
A filosofia não é uma ciência porque o seu saber não é verificável, porque não se chegam a amplos consensos mas a verificabilidade e o consenso não podem ser critério único de validação do conhecimento. Aliás a identificação usual entre ciência e conhecimento verdadeiro é perigosa e falsa porque assenta no pressuposto de que há um modelo de conhecimento e de que a verdade é monopólio desse tipo de conhecimento sem ter em conta as múltiplas dimensões humanas.
A filosofia não é inútil porque só é inútil aquilo que nos deixa indiferentes, amodorrados nas nossas trivialidades e pequenas seguranças, cegos e surdos ao que poderia alterar o nosso universo privado, a nossa prisão ainda que dourada.
A filosofia não é cómoda; ela não se faz de pantufas porque exige empenhamento, honestidade e rigor intelectuais, esforço, humildade, autonomia e abertura ao diálogo e ao confronto de ideias. A filosofia é diálogo e nasce do diálogo, diálogo constante connosco e com os outros, diálogo sistemático e organizado, sem temas tabu ou reservas mentais. Num tempo de monólogos, discursos unidimensionais e de técnicas de marketing para venda do produto, inclusivé o produto intelectual, o diálogo filosófico pode e deve ser o estilhaçar do autismo dominante, o convite para a solidariedade que se faz na tolerância e na diferença.
SÓ A INTENÇÃO É QUE CONTA?


É costume dizer-se que a intenção é que conta. Esta afirmação generalizou-se a tal ponto que serve mesmo para justificar as actuações mais condenáveis e todos querem passar por bem intencionados. Não podemos porém esquecer que não estamos sozinhos e que devemos pensar também nos outros e nas consequências das nossas acções.
Normalmente estamos prisioneiros do egoísmo, reféns de uma visão autista das coisas e o mundo gira à volta do nosso umbigo, espelhando as nossas fantasias e desilusões. Normalmente estamos reduzidos ao plano liso de um espelho que só reproduz aquela imagem de nós a que nos habituamos a confundir connosco.
Desde Descartes é habitual glorificar a omnipresença do eu e, de uma forma ou de outra, ficar enredado nos labirintos do solipsismo. No entanto será que a afirmação da individualidade implica forçosamente o menosprezo pela convivencialidade e uma condenação forçada a transformarmo-nos em ilhas com ténues ligações entre si, ligações essas regidas pelas leis do interesse? A afirmação da individualidade terá como consequência necessária o ficarmos limitados a uma perspectiva mutilada de quem olhando as coisas se revê numa imagem reflectida?
Penso que a individualidade não se reduz à consciência e não pode alicerçar-se sobre a dicotomização corpo/espírito. Essa individualidade autista, perfeitamente horrorizada perante o perigoso desconhecido que albergamos em nós foi claramente denunciada por Freud e temos hoje que construir sobre as suas ruínas.
É imprescindível que cada homem construa o seu projecto de vida e se esforce por concretizar os seus sonhos mas esse projecto e esses sonhos não podem constituir motivos para nos encerrarmos ainda mais nos nossos muros.
Em substituição do homem solitário é preciso construir o homem solidário, capaz de assumir responsabilidade plena pelos seus actos e de contribuir de forma criativa para uma vivência comum que permita a realização de todos e de cada um. Creio mesmo que a individualidade de cada um se forja no contacto e no confronto com os outros sem que isso implique uma sociabilidade forçada, feita de abdicações e imitações, de obediência a códigos alicerçados na força do hábito.
Se é a intencionalidade que torna os nossos actos significativos e lhes fornece validade existencial é necessário entender que a intencionalidade deve ser enraizada num diálogo com a realidade e com os outros em que definitivamente não somos os únicos interlocutores essenciais. Sem intencionalidade os actos serão gratuitos mas sem consciência de nós e dos outros perdemo-nos num labirinto de Narciso, pirâmides inúteis a assinalar uma existência que se esgotou como uma chama que apenas iluminou o vazio.
Ser homem é ser responsável e solidário, é assumir a tarefa e a liberdade de se construir sem impedir a construção dos outros. Ser homem é ser consciente de si e dos outros, é ultrapassar as limitações do aqui e agora e ser projecto e vida, algo que supera a situação de mero existente e se justifica através do seu próprio caminhar. É através da relação com os outros que o homem se descobre e se pode construir. É na partilha e no diálogo aberto que não exclui o conflito e as diferenças que o homem cria a sua própria realidade e a realidade comum. É através da intencionalidade responsável e solidária que o homem pode ultrapassar as suas fronteiras e crescer num mundo que finalmente seja um mundo de homens e para os homens.
A acção

Luzes! Câmara! Acção! Apetece-me começar assim como se estivesse nas filmagens do “Indiana Jones” ou do “Parque Jurássico”. Embora não seja propriamente de espectáculo que se trata é de verdadeiros actores que falamos. Os homens são actores inevitavelmente, uns mais à vontade do que outros neste palco que é a vida como lhe chamou Shakespeare. Desde que nascemos ou que temos consciência de nós que nos vemos obrigados a fazer coisas. A imobilidade, a ataraxia completa podem ser importantes características das pedras e de alguns animais mas é seguramente algo de perigoso para a sobrevivência humana. Cada um de nós se identifica pelo seu bilhete de identidade, pelo número de contribuinte, pelo cartão de estudante ou de sócio de um certo clube de futebol, por aquilo que diz, pelas promessas que faz, pelos insultos que proferiu e profere mas fundamentalmente cada um de nós se identifica, se singulariza, por aquilo que faz quer o faça involuntariamente quer conscientemente.
É claro que nem tudo o que fazemos é voluntário mas mesmo esses actos que não reivindicamos como nossos, porque impulsivos, porque irreflectidos ou porque praticados sob o efeito da pressão das massas e das modas, nos classificam dizendo bem alto quem nós somos por omissão ou preguiça. Por isso é tão importante que aquilo que fazemos seja reflectido, escolhido, que tenha um sentido e que de alguma forma contribua para a nossa afirmação e a nossa realização. Isso significa que a nossa acção deve ser intencional. A intencionalidade implica que a acção seja voluntária, consciente e que seja orientada por objectivos, por projectos de modo que a possamos justificar justificando-nos a nós mesmos. Querer que a nossa acção seja intencional é reivindicar a nossa liberdade, é recusar que a nossa vida possa estar destinada de antemão ou ser manipulada por alguém ou algo exterior a nós. Querer que a nossa acção seja intencional é simplesmente aceitar o desafio de recusar os papeis já feitos que nos querem fazer representar e ser, para além de actores, os autores das nossas acções, das nossas vidas.
É de liberdade que falo mas não de uma liberdade total, fantasma. Temos a obrigação de ser livres mas isso não significa que tudo o que fazemos possa ser projectado e executado sem obstáculos e sem limitações. Essa liberdade ideal só a pode gozar quem esteja completamente isolado dos outros homens e mesmo assim teria que ter as características de um deus, isto é, não precisar de absolutamente nada nem de ninguém.
Os homens vivem em sociedades, sociedades que têm as suas leis e os seus costumes. Para além disso temos necessidades naturais e cada um de nós traz nos seus genes potencialidades que são como que sementes. A esse conjunto de elementos que influenciam a nossa acção, a condicionam e a podem mesmo, em alguns casos, limitar, chamamos condicionantes e é necessário não as ignorar mas também não as aceitar como uma fatalidade. As nossas condicionantes quer individuais quer sociais interagem com os nossos projectos, com as nossas escolhas mas não devem de forma nenhuma anulá-los ou reduzi-los a meros simulacros de liberdade.
Luzes! Câmara! Acção! Mas cuidado que a vida não é um “Big Brother”. A vida requer responsabilidade mas dispensa os mirones e os confessionários públicos. Enjaular alguns homens, ainda que por vontade própria, não pode transformar-se num símbolo da realidade. O que torna a vida interessante e mesmo valiosa é a riqueza e a diversidade das situações e não é emparedando algumas cobaias num ambiente de relações forçadas e de privacidade mínima para não dizer inexistente que se pode fingir uma pretensa realidade forte mesmo que sob a forma de novela. Quando muito o “Big Brother” é um clone falhado da realidade com o acréscimo de se reger por uma lógica perversa que se quer banalizar de que a perda de privacidade é necessariamente o preço a pagar pelo sucesso ou a fama mesmo que efémeros.
Luzes! Câmara! Acção! Cada vez mais acção e melhor acção. Conforme a idade vai avançando mais o peso das acções passadas influencia a escolha das novas acções embora o aumento da experiência e da consciência possam e devam contrabalançar esse peso por vezes excessivo do nosso passado sobre o nosso futuro. Cada escolha feita invalida todo um conjunto de possibilidades que se vão tornando cada vez menores aumentando assim de forma quase assustadora a nossa responsabilidade.
O homem é um ser que transforma o seu mundo transformando-se a si mesmo, construindo-se, renovando-se. A acção é o núcleo central dessa transformação, dessa construção permanente, dessa renovação. Se um homem abdicar, por preguiça, por cobardia ou por comodismo, da acção consciente, voluntária e intencional, está a abdicar da oportunidade de se afirmar, de contribuir de forma decisiva para a mudança necessária das situações que nunca são as ideais.
Será que podemos correr o risco de passar ao lado da vida por falta de vontade, por inacção? Será que nos podemos justificar indicando tudo aquilo que não fizemos, enunciando todos os actos que sonhamos mas que não executamos? Será que podemos indefinidamente alegar a nosso favor que a ocasião se não proporcionou, que continuamos a esperar a altura certa?
Luzes! Câmara! Acção! O pano só cairá quando a morte chegar inevitável e já não houver mais nenhuma acção que possa ser feita.

quinta-feira, outubro 26, 2006

A dimensão discursiva do trabalho filosófico
A filosofia é discurso, discussão, debate, controvérsia, argumentação. As armas do filósofo são as ideias e os argumentos e, com elas, o filósofo não pretende impôr a sua visão das coisas, mas contribuir para que cada um reflicta de forma crítica sobre o que lhe é proposto, sobre as grandes questões que inquietam os homens. O produto do trabalho dos filósofos são os discursos, os textos, eventualmente os livros.
A filosofia ajuda-nos a pensar melhor. Para pensar usamos conceitos, juízos e raciocínios e para nos expressarmos usamos termos, proposições e argumentos. A filosofia ajuda-nos a clarificar os conceitos, a ajuizar devidamente e a raciocinar de forma correcta. A filosofia é um livre exercício do pensamento e um rigoroso trabalho de argumentação. Se bem que tudo seja pensável, nem tudo é justificável ou sustentável. As teses e teorias têm que ser racionalmente fundamentadas. Fundamentar qualquer coisa significa apoiá-la em razões, justificá-la com argumentos ponderados, alicerçá-la em bases seguras ainda que discutíveis.
A filosofia é polémica pelos assuntos tratados, é radical na forma como aborda os problemas, é muitas vezes irreverente nas conclusões que apresenta, mas, em nenhum dos casos, a filosofia pode ser incoerente, inconsequente, atabalhoada, uma miscelanea de ideias mal concatenadas.
Deve-se esperar dos filósofos clareza nas ideias e rigor nos raciocínios. Se por vezes, devido à complexidade do tema, não é possível construir um discurso simples, acessível, há que evitar transformá-lo numa floresta de artifícios, num mendroso labirinto que, em vez de abrir caminhos, nos encerra em herméticas conclusões.
Deve-se exigir dos filósofos discursos coerentes, bem construídos, razoáveis e, acima de tudo, discursos motivadores para a nossa própria reflexão pessoal. Devemos recusar os discursos em circuito fechado, ainda que bem estruturados, os discursos que apenas pedem aquiescência, aceitação passiva. Enquanto discurso bem fundamentado e rigoroso, o discurso filosófico deve ser capaz de promover o diálogo e a discussão e ser fulcro de criação de outros discursos válidos.
A filosofia é fundamentalmente diálogo, debate de ideias. Por isso não pode ficar fechada nos textos e nos livros, por isso o discurso filosófico deve ser um discurso crítico e aberto, criativo e vivo, capaz de fomentar pontos de discussão. Os discursos filosóficos têm que ser capazes de nos interpelar, de nos obrigar a deixarmos de ser leitores ou auditores passivos para sermos intervenientes na reflexão e discussão dos assuntos apresentados. Os discursos filosóficos não nos podem deixar indiferentes.
É com a força dos seus argumentos ponderados, sólidos, rigorosos, que o filósofo pode intervir e contribuir para que os homens se libertem das suas prisões mentais e se assumam na sua liberdade e na sua racionalidade, encontrando o seu sentido e a sua razão de existência.
O DISCURSO FILOSÓFICO


O discurso filosófico deve ser vivo e acerca da vida. Reduzi-lo a esquemas lógicos, à pura abstracticidade é embalsamar a própria filosofia, obrigá-la a habitar nos livros mais embolorecidos, a fugir da luz e a evitar a praça pública.
O trabalho filosófico não é uma pesquisa de arquivo, uma exegese de um qualquer livro canónico ou um comentário especioso de uma passagem nebulosa. Se assim fosse teriam razão aqueles que consideram a filosofia um saber ultrapassado, uma relíquia perdida no tempo. A filosofia não é a parente pobre de um mundo de saber dominado pela ciência e pela técnica. Por isso não se justifica o seu ar envergonhado, a necessidade de constantemente pedir desculpa pela sua existência e reivindicar a glória de um passado que não regressa. A filosofia tem uma história mas ela é presente e é futuro, não um desfilar incessante de nomes e doutrinas estratificadas no tempo. A filosofia é diálogo, não apenas entre ideias consagradas, conflito entre grandes correntes matriciais, mas preferentemente diálogo entre homens vivos e ideias vivas e actuais. A filosofia é questionamento radical e não um conjunto de respostas eruditas e soluções subtis para problemas metafísicos.
O discurso filosófico não é um discurso da facilidade ou da moda mas também não pode ser um discurso hermético, um conjunto organizado de filosofemas de impenetrável descodificação. Não se deve deixar de exigir à filosofia extremo rigor e extrema coerência; não se deve deixar porém de pretender da filosofia um discurso actual, sem teias de aranha, centrado nos temas que perturbam e incomodam os homens de hoje.
O discurso filosófico não pode ser um discurso inofensivo, envergonhado, descomprometido mas também não deve ser o discurso do sectarismo, da perspectiva única, das verdades convertidas em dogmas, das crenças ainda que transvestidas de racionalidade e disfarçadas sob um espesso manto de silogismos. Não se deve deixar de exigir ao filósofo uma clareza e uma fundamentação das posições assumidas, não se deve deixar de exigir ao filósofo espírito crítico, interrogação permanente, uma explícita recusa da cristalização e do conformismo.
A filosofia não é um saber esterilizado, imune às vivências dos homens, refractário a tudo o que seja situado no tempo e no espaço e por isso um saber etéreo, adaptável a todas e qualquer circunstâncias. A universalidade que se deve exigir à filosofia não é a universalidade dos conceitos abstractos e das ideias impraticáveis, mas a preocupação em ultrapassar o plano da imediaticidade, o querer ver para além dos limites da visão primeira e cómoda. A universalidade filosófica não pode significar um pretexto para não viver o hoje sob a desculpa do amanhã, uma razão para não denunciar as injustiças sob a desculpa de que são simples acidentes de um processo virtualmente justificado.
O discurso filosófico não é discurso de gabinete fechado nem discurso de retalhista preocupado com os lucros do curto e do médio prazo. A filosofia não é produto de marketing nem relatório arquivado a que só podem ter acesso aqueles que possuem o código iniciático. A filosofia não é objecto de luxo nem mercadoria tabelada e normalizada.
Os critérios da filosofia não são critérios de futilidade ou critérios economicistas ou pragmáticos. Os critérios da filosofia são critérios de radicalidade e autonomia. Em consequência disso o discurso filosófico é um discurso orientado por princípios, um discurso ético-lógico em que a lógica não pode ter privilégio sobre o plano ético nem este se pode instituir ignorando ou menosprezando o rigor e a coerência. Por isso o discurso filosófico não é um exercício de retórica nem uma receita de bem viver mas um diálogo constante e crítico, um diálogo de homens que vivem e que pensam e que fundamentalmente se querem seres com sentido num mundo em construção.
FILOSOFIA,LIBERDADE E RIGOR


A filosofia é exercício livre do pensamento. Simultaneamente ela é exercício rigoroso da razão. Estas duas exigências são as marcas mais profundas e mais evidentes da especificidade da filosofia e condicionam-se reciprocamente. Não há liberdade sem rigor e, por sua vez, o rigor não pode significar espartilhos do pensamento, pré-estabelecimento de muros que limitam os horizontes e determinam os rumos a seguir.
Enquanto actividade racional, o filosofar assenta sobre princípios lógicos porque, se não o fizer, converte-se em filodoxia, incoerente caminhar, balbuciar da razão, jogo paradoxal de teoremas e filosofemas contraditórios e absurdos que se anulam.
Sem dúvida que a filosofia deve ser um desafio, mas esse desafio deve ser um desafio assente na coerência e na procura de uma maior coerência. O desafio filosófico não é arte de trapézio sem rede, fogo de artifício sem controlo, salto no escuro sem precaução.
O filósofo não se limita a interrogar e a pensar; fá-lo de forma metódica, utilizando a reflexão como um instrumento de penetração no desconhecido e de dissolução de certezas dogmáticas. O filósofo é aquele que não se deixa enganar pelos cantos das sereias da facilidade e que, a troco de uma pretensa originalidade, não abdica da coerência. Porque livres não são aqueles que se deixam ir na corrente, mas os que se assumem e que persistem em ir contra a corrente, quando e se necessário, para manter o seu rumo.
O discurso da filosofia não é, pois, um discurso fácil, imediato, descartável, não é um discurso que acompanha as modas e que muda com as modas. Sendo um exercício de liberdade é sempre um discurso comprometido e que compromete quem o produziu e quem é seu receptor.
O rigor e a liberdade são assim as duas condições da filosofia e, porque condições de liberdade, não podem ser reduzidas a um conjunto de formulários ou receitas. Não se filosofa de uma só maneira ou num único sentido. Quando se descura o rigor, a pretexto de qualquer urgência de criatividade, ou se compromete a liberdade através de uma obediência cega a regras limitadoras, então é o próprio filosofar que se torna fumo que se esvai ou parede de silogismos que proíbem o longe e a viagem.


terça-feira, outubro 24, 2006

Filosofia, senso comum e ciência
A filosofia opõe-se ao senso comum porque recusa a superficialidade, as visões simplistas e instantaneas, as opiniões infundadas e não argumentadas, as verdades tradicionais cristalizadas. A filosofia rejeita do senso comum a fixidez, a precipitação, a pressa de se agarrar a uma qualquer verdade fácil e cómoda, a intolerância própria de quem transforma as opiniões em crenças inquestionáveis. A filosofia faz a crítica sistemática do senso comum realçando o facto de que muitas das questões tratadas com leveza pelo pensamento vulgar podem ser aprofundadas e reflectidas de modo rigoroso e radical pelos filósofos.
A filosofia porém não é ciência porque não delimita o seu campo de análise, não utiliza experimentações e não é objectiva. A filosofia não é definitivamente ciência embora, tal como ela, procure construir um saber sólido e racional, um saber que ultrapasse o nível do estritamente vivenciado para, assente no rigor e na reflexão crítica, permitir uma compreensão esclarecida do mundo e de nós mesmos. Ninguém espera que a filosofia forneça respostas exactas e únicas para os problemas fundamentais do Homem. A própria diversidade das respostas, sendo factor de diálogo e discussão, é enriquecedora e estimula a procura pessoal, a construção da nossa mundividência.
A filosofia tem, entre outras tarefas, a de examinar os nossos preconceitos e não podemos esquecer que há também preconceitos científicos, antigas verdades que perderam o seu valor científico ou foram substituídas por outras mas a que nos apegamos obstinadamente. Para o homem do senso comum a ciência, que lhe permanece estranha, transformou-se numa nova religião e na fábrica de novos dogmas.
Por outro lado, as próprias explicações científicas deixam por responder muitas questões que não podem ser ignoradas e acrescentam também novos problemas. A aliança entre a ciência e a técnica, sem dúvida proveitosa em muitas aspectos, empobreceu a racionalidade convertendo-a numa racionalidade técnica, instrumental, que parece só entender a realidade quando a pode manipular e submeter.

sexta-feira, outubro 20, 2006

"Conhece-te a ti mesmo"
"Conhece-te a ti mesmo" parece ser um conselho evidente e fácil de seguir mas revela-se uma árdua e inesgotável tarefa. Para nos conhecermos é preciso abandonarmos as imagens que os outros fizeram de nós e a que nos acostumamos a identificar connosco e as idealizações que pacientemente construímos de nós próprios. Temos que retirar, camada por camada, o verniz com que revestimos os aspectos de que menos gostamos em nós. Temos que descer aos nossos abismos. Para nos conhecermos não basta olharmos passivamente para os nossos reflexos. Temos que exorcizar os nossos fantasmas. Temos que ser implacáveis para connosco. Quando julgamos já saber tudo acerca de nós, quando julgamos conhecer os mais reconditos meandros, é altura de recomeçar a tarefa.
O "conhece-te a ti mesmo" não significa porém um fecharmo-nos em nós, uma viagem solipsista ao nosso mundo isolado. Se não somos ou não devemos ser aquilo que os outros querem de nós, sem eles, sem os outros que fazem parte do nosso mundo, corremos o risco de ficarmos reduzidos a uma ilha deserta. Descobrirmo-nos, saber quem somos, deve ser uma tarefa que implica abertura e não clausura, romper de horizontes e não construção de prisões nem que sejam de vidro.

quarta-feira, outubro 11, 2006


"Só sei que nada sei"
"Só sei que nada sei" não é a divisa da filosofia e muito menos um apelo à ignorância mas uma provocação àqueles que se apresentam como sábios e detentores das verdades. Na boca de Sócrates, "só sei que nada sei" é a expressão da ironia, essa arma filosófica apontada ao ridículo dos sábios fechados em si mesmos, prepotentes, pomposos. Ontem como hoje são muitos, demasiados, esses sábios que se tomam a sério e que querem que os tomemos a sério mas que são incapazes de partilharem connosco os segredos desses saberes que dizem possuir. Ontem como hoje esses sábios de tudo e de nada escondem-se por detrás de livros e de palavras complicadas e, quando são interpelados, ficam indignados, irritados, ofendidos na sua sabedoria sacrossanta e impenetrável. A filosofia continua a ter como tarefa a destruição dos mitos e dos ídolos. Continua também a ser necessário denunciar os sofistas, desmascará-los, desmontar as suas falsas e ocas sabedorias alicerçadas sobre preconceitos e ideias feitas.
"Só sei que nada sei" e porque o sei não me deixarei anestesiar pelos saberes fáceis, cómodos, os saberes canto de sereia e continuarei à procura, insatisfeito e crítico, filósofo.

terça-feira, outubro 10, 2006

"Filosofar é estar a caminho"
Karl Jaspers, na sua Iniciação Filosófica, escreveu que "filosofar é estar a caminho". Poucas afirmações são tão repetidas nos cursos e nas diversas introduções à Filosofia como esta. Estar a caminho não significa vagabundear, andar sem nexo, em ziguezagues. Estar a caminho não é sinónimo de desorientação, de falta de rumo. Karl Jaspers insiste na importância da questionação e na necessidade de estar aberto a novas perspectivas, a novas formas de olhar. Insistamos também nós no facto de o filósofo se recusar a ficar cristalizado e a sedentarizar o pensamento. O filósofo é o que procura e não o que descança depois da descoberta, o filósofo é o insatisfeito e não aquele que se acomoda a uma teoria ou a um sistema de explicação das coisas. Estar a caminho significa não se deixar adormecer nas pequenas ou grandes certezas, permanecer de espírito aberto e crítico, estar alerta. Estar a caminho é adoptar uma postura de atenção e de precaução.
O filósofo é-o porque recusa tudo o que o paralise e o deixe inerte e adormecido. Estar a caminho é a sua forma de estar e de ser.

terça-feira, outubro 03, 2006

Do que precisamos para filosofar:
- Abrirmo-nos ao mundo e aos outros e não nos encerrarmos no nosso pequeno espaço claustrofóbico.
- Admirarmo-nos, espantarmo-nos perante as coisas, recusar o hábito e a rotina, sermos capazes de ver com atenção o que nos rodeia e em que normalmente deixamos de reparar.
- Sermos curiosos; a curiosidade advém da admiração e do espanto.
- Interrogarmo-nos sobre as coisas e sobre nós próprios, colocando questões, mesmo aquelas que são inconvenientes.
- Desconfiarmos das evidências e dos saberes constituídos, principalmente quando eles estão cristalizados.
- Usarmos o espírito crítico recusando a passividade e a preguiça mental e reavaliando os preconceitos, as crenças e as verdades instaladas.
- Reflectirmos com radicalidade, rigor e persistência sobre todos os temas não aceitando a ideia de que há temas tabu.

quinta-feira, setembro 28, 2006


Ainda Savater
Quem teve a oportunidade de assistir na passada terça-feira, dia 26, no canal 2 da televisão à entrevista a Fernando Savater pôde comprovar a sua enorme facilidade de comunicação e o interesse quer do discurso quer dos temas abordados. De uma forma muito humana (quem diria que os filósofos também são humanos!) e agradável, Savater deslumbrou pelas ideias e pela simplicidade com que as explicitou conseguindo mesmo, em muitos momentos, ter um discurso mais acessível do que o da entrevistadora.


Continua a haver quem insiste em dizer que toda a filosofia é complicada e aborrecida e que, por força disso, os filósofos são obnóxios e incompreensíveis. É verdade que são muitos os filósofos que exigem muita paciência para descobrir as suas ideias e resumi-las de uma forma simples. É verdade que muitas vezes a linguagem utilizada pelos filósofos é muito específica o que torna difícil a sua compreensão para quem não está habituado a dominar o vocabulário filosófico. Tudo isto é verdade mas é também verdade que existem filósofos que conseguem comunicar de forma descomplicada e mesmo atractiva. Temos como exemplo Fernando Savater que foi capaz de tratar os temas da ética de uma forma acessível a adolescentes. Recomendo vivamente a leitura da "Ética para um Jovem".

quarta-feira, setembro 27, 2006


Para filosofar é preciso estar atento às coisas, evitar cuidadosamente os juízos precipitados, colocar sob exame rigoroso e crítico as nossas crenças mais profundas, ousar pensar para além dos limites pré-estabelecidos. A precipitação, a preguiça mental e os preconceitos são os inimigos iniciais da filosofia. É necessário estar preparado para resistir aos apelos à facilidade, ao canto das sereias dos que nos querem aliciar para as modas e nos querem fazer desistir de pensar por nós mesmos.

terça-feira, setembro 26, 2006


O que é a filosofia? Que esfinge perturbadora nos vem perguntar quem somos, se merecemos existir, se algo nos distingue das coisas que fazem parte do nosso mundo? Somos seres inquietos que procuram o sentido da sua existência e recusam as respostas padronizadas, as receitas miraculosas, os caminhos que nos levam à prometida redenção à custa da perda da nossa própria identidade.
Dizer que a filosofia é um enigma não chega. É preciso aventurarmo-nos no mundo complexo do pensamento pessoal e radical, desafiar as nossas crenças, enfrentar os nossos medos, desconstruir as verdades estáticas que nos oferecem ou nos vendem a preço de saldo, libertarmo-nos do peso dos ábitos e das ideias simples e cómodas.
Dizer que a filosofia é incómoda não nos faz ser menos curiosos e persistentes. São os desafios e as conquistas, as dificuldades superadas, que tornam a nossa vida mais interessante.
O que é a filosofia? Às vezes a repetição da pergunta é a melhor forma de responder à questão.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Este é mais um blog dedicado à filosofia que não se quer chato mas um convite para entrar num universo de rigor e simultaneamente de deslumbramento.
A filosofia está viva e activa. Quem a quer cadáver é porque a receia. Quem se sente incomodado com ela é porque se acustumou a uma vida de fingimento em que a monotonia e a rotina são mestras e senhoras do destino.