terça-feira, novembro 14, 2006

A acção

Luzes! Câmara! Acção! Apetece-me começar assim como se estivesse nas filmagens do “Indiana Jones” ou do “Parque Jurássico”. Embora não seja propriamente de espectáculo que se trata é de verdadeiros actores que falamos. Os homens são actores inevitavelmente, uns mais à vontade do que outros neste palco que é a vida como lhe chamou Shakespeare. Desde que nascemos ou que temos consciência de nós que nos vemos obrigados a fazer coisas. A imobilidade, a ataraxia completa podem ser importantes características das pedras e de alguns animais mas é seguramente algo de perigoso para a sobrevivência humana. Cada um de nós se identifica pelo seu bilhete de identidade, pelo número de contribuinte, pelo cartão de estudante ou de sócio de um certo clube de futebol, por aquilo que diz, pelas promessas que faz, pelos insultos que proferiu e profere mas fundamentalmente cada um de nós se identifica, se singulariza, por aquilo que faz quer o faça involuntariamente quer conscientemente.
É claro que nem tudo o que fazemos é voluntário mas mesmo esses actos que não reivindicamos como nossos, porque impulsivos, porque irreflectidos ou porque praticados sob o efeito da pressão das massas e das modas, nos classificam dizendo bem alto quem nós somos por omissão ou preguiça. Por isso é tão importante que aquilo que fazemos seja reflectido, escolhido, que tenha um sentido e que de alguma forma contribua para a nossa afirmação e a nossa realização. Isso significa que a nossa acção deve ser intencional. A intencionalidade implica que a acção seja voluntária, consciente e que seja orientada por objectivos, por projectos de modo que a possamos justificar justificando-nos a nós mesmos. Querer que a nossa acção seja intencional é reivindicar a nossa liberdade, é recusar que a nossa vida possa estar destinada de antemão ou ser manipulada por alguém ou algo exterior a nós. Querer que a nossa acção seja intencional é simplesmente aceitar o desafio de recusar os papeis já feitos que nos querem fazer representar e ser, para além de actores, os autores das nossas acções, das nossas vidas.
É de liberdade que falo mas não de uma liberdade total, fantasma. Temos a obrigação de ser livres mas isso não significa que tudo o que fazemos possa ser projectado e executado sem obstáculos e sem limitações. Essa liberdade ideal só a pode gozar quem esteja completamente isolado dos outros homens e mesmo assim teria que ter as características de um deus, isto é, não precisar de absolutamente nada nem de ninguém.
Os homens vivem em sociedades, sociedades que têm as suas leis e os seus costumes. Para além disso temos necessidades naturais e cada um de nós traz nos seus genes potencialidades que são como que sementes. A esse conjunto de elementos que influenciam a nossa acção, a condicionam e a podem mesmo, em alguns casos, limitar, chamamos condicionantes e é necessário não as ignorar mas também não as aceitar como uma fatalidade. As nossas condicionantes quer individuais quer sociais interagem com os nossos projectos, com as nossas escolhas mas não devem de forma nenhuma anulá-los ou reduzi-los a meros simulacros de liberdade.
Luzes! Câmara! Acção! Mas cuidado que a vida não é um “Big Brother”. A vida requer responsabilidade mas dispensa os mirones e os confessionários públicos. Enjaular alguns homens, ainda que por vontade própria, não pode transformar-se num símbolo da realidade. O que torna a vida interessante e mesmo valiosa é a riqueza e a diversidade das situações e não é emparedando algumas cobaias num ambiente de relações forçadas e de privacidade mínima para não dizer inexistente que se pode fingir uma pretensa realidade forte mesmo que sob a forma de novela. Quando muito o “Big Brother” é um clone falhado da realidade com o acréscimo de se reger por uma lógica perversa que se quer banalizar de que a perda de privacidade é necessariamente o preço a pagar pelo sucesso ou a fama mesmo que efémeros.
Luzes! Câmara! Acção! Cada vez mais acção e melhor acção. Conforme a idade vai avançando mais o peso das acções passadas influencia a escolha das novas acções embora o aumento da experiência e da consciência possam e devam contrabalançar esse peso por vezes excessivo do nosso passado sobre o nosso futuro. Cada escolha feita invalida todo um conjunto de possibilidades que se vão tornando cada vez menores aumentando assim de forma quase assustadora a nossa responsabilidade.
O homem é um ser que transforma o seu mundo transformando-se a si mesmo, construindo-se, renovando-se. A acção é o núcleo central dessa transformação, dessa construção permanente, dessa renovação. Se um homem abdicar, por preguiça, por cobardia ou por comodismo, da acção consciente, voluntária e intencional, está a abdicar da oportunidade de se afirmar, de contribuir de forma decisiva para a mudança necessária das situações que nunca são as ideais.
Será que podemos correr o risco de passar ao lado da vida por falta de vontade, por inacção? Será que nos podemos justificar indicando tudo aquilo que não fizemos, enunciando todos os actos que sonhamos mas que não executamos? Será que podemos indefinidamente alegar a nosso favor que a ocasião se não proporcionou, que continuamos a esperar a altura certa?
Luzes! Câmara! Acção! O pano só cairá quando a morte chegar inevitável e já não houver mais nenhuma acção que possa ser feita.

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