quinta-feira, outubro 26, 2006
O discurso filosófico deve ser vivo e acerca da vida. Reduzi-lo a esquemas lógicos, à pura abstracticidade é embalsamar a própria filosofia, obrigá-la a habitar nos livros mais embolorecidos, a fugir da luz e a evitar a praça pública.
O trabalho filosófico não é uma pesquisa de arquivo, uma exegese de um qualquer livro canónico ou um comentário especioso de uma passagem nebulosa. Se assim fosse teriam razão aqueles que consideram a filosofia um saber ultrapassado, uma relíquia perdida no tempo. A filosofia não é a parente pobre de um mundo de saber dominado pela ciência e pela técnica. Por isso não se justifica o seu ar envergonhado, a necessidade de constantemente pedir desculpa pela sua existência e reivindicar a glória de um passado que não regressa. A filosofia tem uma história mas ela é presente e é futuro, não um desfilar incessante de nomes e doutrinas estratificadas no tempo. A filosofia é diálogo, não apenas entre ideias consagradas, conflito entre grandes correntes matriciais, mas preferentemente diálogo entre homens vivos e ideias vivas e actuais. A filosofia é questionamento radical e não um conjunto de respostas eruditas e soluções subtis para problemas metafísicos.
O discurso filosófico não é um discurso da facilidade ou da moda mas também não pode ser um discurso hermético, um conjunto organizado de filosofemas de impenetrável descodificação. Não se deve deixar de exigir à filosofia extremo rigor e extrema coerência; não se deve deixar porém de pretender da filosofia um discurso actual, sem teias de aranha, centrado nos temas que perturbam e incomodam os homens de hoje.
O discurso filosófico não pode ser um discurso inofensivo, envergonhado, descomprometido mas também não deve ser o discurso do sectarismo, da perspectiva única, das verdades convertidas em dogmas, das crenças ainda que transvestidas de racionalidade e disfarçadas sob um espesso manto de silogismos. Não se deve deixar de exigir ao filósofo uma clareza e uma fundamentação das posições assumidas, não se deve deixar de exigir ao filósofo espírito crítico, interrogação permanente, uma explícita recusa da cristalização e do conformismo.
A filosofia não é um saber esterilizado, imune às vivências dos homens, refractário a tudo o que seja situado no tempo e no espaço e por isso um saber etéreo, adaptável a todas e qualquer circunstâncias. A universalidade que se deve exigir à filosofia não é a universalidade dos conceitos abstractos e das ideias impraticáveis, mas a preocupação em ultrapassar o plano da imediaticidade, o querer ver para além dos limites da visão primeira e cómoda. A universalidade filosófica não pode significar um pretexto para não viver o hoje sob a desculpa do amanhã, uma razão para não denunciar as injustiças sob a desculpa de que são simples acidentes de um processo virtualmente justificado.
O discurso filosófico não é discurso de gabinete fechado nem discurso de retalhista preocupado com os lucros do curto e do médio prazo. A filosofia não é produto de marketing nem relatório arquivado a que só podem ter acesso aqueles que possuem o código iniciático. A filosofia não é objecto de luxo nem mercadoria tabelada e normalizada.
Os critérios da filosofia não são critérios de futilidade ou critérios economicistas ou pragmáticos. Os critérios da filosofia são critérios de radicalidade e autonomia. Em consequência disso o discurso filosófico é um discurso orientado por princípios, um discurso ético-lógico em que a lógica não pode ter privilégio sobre o plano ético nem este se pode instituir ignorando ou menosprezando o rigor e a coerência. Por isso o discurso filosófico não é um exercício de retórica nem uma receita de bem viver mas um diálogo constante e crítico, um diálogo de homens que vivem e que pensam e que fundamentalmente se querem seres com sentido num mundo em construção.
A filosofia é exercício livre do pensamento. Simultaneamente ela é exercício rigoroso da razão. Estas duas exigências são as marcas mais profundas e mais evidentes da especificidade da filosofia e condicionam-se reciprocamente. Não há liberdade sem rigor e, por sua vez, o rigor não pode significar espartilhos do pensamento, pré-estabelecimento de muros que limitam os horizontes e determinam os rumos a seguir.
Enquanto actividade racional, o filosofar assenta sobre princípios lógicos porque, se não o fizer, converte-se em filodoxia, incoerente caminhar, balbuciar da razão, jogo paradoxal de teoremas e filosofemas contraditórios e absurdos que se anulam.
Sem dúvida que a filosofia deve ser um desafio, mas esse desafio deve ser um desafio assente na coerência e na procura de uma maior coerência. O desafio filosófico não é arte de trapézio sem rede, fogo de artifício sem controlo, salto no escuro sem precaução.
O filósofo não se limita a interrogar e a pensar; fá-lo de forma metódica, utilizando a reflexão como um instrumento de penetração no desconhecido e de dissolução de certezas dogmáticas. O filósofo é aquele que não se deixa enganar pelos cantos das sereias da facilidade e que, a troco de uma pretensa originalidade, não abdica da coerência. Porque livres não são aqueles que se deixam ir na corrente, mas os que se assumem e que persistem em ir contra a corrente, quando e se necessário, para manter o seu rumo.
O discurso da filosofia não é, pois, um discurso fácil, imediato, descartável, não é um discurso que acompanha as modas e que muda com as modas. Sendo um exercício de liberdade é sempre um discurso comprometido e que compromete quem o produziu e quem é seu receptor.
O rigor e a liberdade são assim as duas condições da filosofia e, porque condições de liberdade, não podem ser reduzidas a um conjunto de formulários ou receitas. Não se filosofa de uma só maneira ou num único sentido. Quando se descura o rigor, a pretexto de qualquer urgência de criatividade, ou se compromete a liberdade através de uma obediência cega a regras limitadoras, então é o próprio filosofar que se torna fumo que se esvai ou parede de silogismos que proíbem o longe e a viagem.
terça-feira, outubro 24, 2006
sexta-feira, outubro 20, 2006
quarta-feira, outubro 11, 2006

terça-feira, outubro 10, 2006
terça-feira, outubro 03, 2006
Do que precisamos para filosofar:
- Abrirmo-nos ao mundo e aos outros e não nos encerrarmos no nosso pequeno espaço claustrofóbico.
- Admirarmo-nos, espantarmo-nos perante as coisas, recusar o hábito e a rotina, sermos capazes de ver com atenção o que nos rodeia e em que normalmente deixamos de reparar.
- Sermos curiosos; a curiosidade advém da admiração e do espanto.
- Interrogarmo-nos sobre as coisas e sobre nós próprios, colocando questões, mesmo aquelas que são inconvenientes.
- Desconfiarmos das evidências e dos saberes constituídos, principalmente quando eles estão cristalizados.
- Usarmos o espírito crítico recusando a passividade e a preguiça mental e reavaliando os preconceitos, as crenças e as verdades instaladas.
- Reflectirmos com radicalidade, rigor e persistência sobre todos os temas não aceitando a ideia de que há temas tabu.